Palavras-chave: arte tecnológica como processo | clássica | linguagens
Para a compreensão dos impactos que a tecnologia pode ter na arte contemporânea, antes é preciso compreender o que o apêndice ‘contemporâneo’ significa para a arte. Esta compreensão passa pela definição, em termos gerais, da arte clássica e da arte moderna, uma vez que a sucessora rompe com a anterior como forma de pensar e fazer artístico. Não é objetivo deste trabalho analisar o contexto social e/ou histórico de cada movimento, mas tentar delinear o modo como o fazer artístico se dá. Em outras palavras, serão analisados três pontos:
1) as diretrizes do fazer artístico;
2) o critério de valor da obra;
3) a postura do público diante da obra.
A arte clássica era fundamentada segundo conceitos rígidos de forma e ‘como fazer’. O fazer artístico estaria, do ponto de vista da criação, mirando na perfeição ou no divino. Os temas clássicos também representam os reis, os heróis, as batalhas épicas e, enfim, o divino. Não se cogita, por exemplo, alterar uma obra clássica com o intuito de melhorá-la. A Flauta Mágica de Mozart, por exemplo, é uma obra perfeita e aos músicos que a executam só resta tentar aproximar a performance da perfeição da criação. O valor da arte clássica estaria, assim, em uma maior proximidade com essa referência metafísica de genialidade ou divindade. A postura do público não é de ceticismo em relação à arte, que é naturalmente bela, associada à verdade, mas na capacidade do artista em desempenhar de acordo.
Antes de continuar o raciocínio, torna-se necessária a abertura de um parênteses. É um tanto absurdo reduzir um conceito tão amplo quanto ‘arte clássica’ em tão simples consideração. É natural que o estranhamento perante tal ousadia recorra à memória para contrariar as afirmações com exemplos. Ainda que esta seja uma redução difícil, há uma vantagem prática nela. Quando tratarmos da tecnologia aplicada à arte, devemos ter em mente as influências da forma clássica do fazer artístico, tão presente ainda hoje.
De qualquer forma, é notória a relação das artes clássicas com uma rigidez no fazer e uma busca no transcender. O balé clássico é composto por movimentos precisos, repetidos inúmeras vezes por todos os aspirantes a bailarinos, sempre na busca de uma perfeição geométrica e impessoal. A escultura e a pintura clássicas, cada qual com seu meio, buscam um ultra realismo que impressiona até mesmo pessoas acostumadas com a fotografia. Em todas as linguagens, os exemplos dessa busca metafísica são vastos, por isso a associação da arte clássica com a busca de um ideal não material.
A arte moderna acaba por romper com os limites impostos pela clássica e desenvolve novas formas de fazer artístico. Regras antes consideradas perfeitas são agora subvertidas e quebradas como caminho para a construção de uma nova linguagem. A dança se liberta dos movimentos pré estabelecidos e cria novos movimentos a partir da liberdade do dançarino. A pintura se liberta da representação ultra realista de temática divina e passa a representar pessoas comuns e em imagens disformes. O exemplo mais vivo da pintura modernista brasileira é o quadro Os Operários, de Tarsila do Amaral, um retrato da variedade étnica e da industrialização de São Paulo. O valor agora está não mais na aproximação com uma ideia de perfeição, mas na construção de uma linguagem e na representação estética de um evento cotidiano.
Nesse contexto, o debate sobre mímesis se encontra atual. Para além de ser traduzida como simples imitação ou representação, a mímesis na arte está relacionada a expressar simbolicamente o metafísico, o oculto, tudo aquilo que foge dos padrões da racionalidade. Ainda que alguns autores tratam-na como uma reprodução instintiva da realidade humana, Augusto Boal, propõe que a melhor tradução para o termo não seja ‘imitação’, mas ‘recriação’, termo que considera mais adequado que o primeiro, que representaria uma simples cópia das coisas. A arte clássica recriaria então uma experiência metafísica através de forma perfeitas, enquanto que a arte moderna recriaria uma experiência cotidiana através de formas livres.
A arte moderna rompe com os limites da arte clássica, mas mantém as linguagens artísticas distintas. Dança moderna rompe com a dança clássica somente, o mesmo para as outras linguagens. A arte contemporânea, por sua vez, representa uma ruptura com todos os limites do que tradicionalmente é considerado arte. Por isso é comum tratar a arte contemporânea através de termos como ‘o fim da arte’, ‘ a morte da arte’, ou ainda a ‘não-arte’. Na forma clássica não há dúvida sobre a natureza e beleza da arte, sendo a dúvida direcionada à capacidade do artista para tarefa tão nobre. Na forma moderna, não tendo mais a referência da perfeição, a dúvida do público se volta para a qualidade da arte agora criada. No contemporâneo, a dúvida reside na natureza da arte, em outras palavras, se uma obra é ou não é arte.
A ausência de fronteiras e suportes permitiu o surgimento de linguagens híbridas como a dança-teatro e a performance, mas também permitiu a inclusão de meios aparentemente antagônicos. A tecnologia por sua natureza é resultado de habilidades e conhecimentos e tem uma finalidade utilitária, e sendo assim estaria limitada na definição de techné, jamais mímesis. A libertação contemporânea das restrições tradicionais típicas das artes clássica e moderna criaram uma crise de diálogo entre artistas, instituições e público, mas também permitiram o surgimento de novas linguagens e meios não convencionais. A ideia de uma arte tecnológica não pode ser concebida se não no contexto da arte contemporânea.
Não se pretende problematizar a capacidade de mímesis, ou significação simbólica, da tecnologia aplicada à arte. Isto é visto como uma consequência natural da própria capacidade humana de dar significados a entidades abstratas, e pode ser conseguida por um simples processo de experimentação subversiva típica da arte. Há, no entanto, um problema de hierarquia ou valor entre as linguagens. Como podem linguagens tão distintas serem incorporadas a uma obra com significação orgânica? Essa questão é tratada por Renata Ferraz em seu trabalho. O caminho para uma possível resposta está no que ela chama de co-afetações. Em resumo, neste caso tratando da linguagem teatral em palco, a narrativa deve ser construída como um ciclo de afetos entre os elementos em cena, quaisquer que sejam as suas linguagens. Em outras palavras, não há uma hierarquia entre as linguagens, elas se alternam em papéis de causa e efeito cênico.
Uma última barreira do uso da tecnologia nas artes talvez seja a ignorância sobre o seu funcionamento. Em sua origem, é uma técnica de fundamentação matemática, nem sempre intuitiva, e seu funcionamento é quase inacessível à maioria dos artistas tradicionais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
KAITAVUORI, Kaija. The paradigm of contemporary art – a review. Paris, Editions Gallimard, coll. «Bibliothèque des Sciences Humaines», 2014, pag 373.
FERRAZ, Renata. O Corpo, a Imagem em Movimento e a Marionete: a cena contemporânea oriunda de formas [in]animadas Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 226-241, maio/ago. 2016.