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A natureza da arte – o humano virtual

Palavras-chave: arte virtualidade criação pessoas natureza

A Arte tem um papel tão orgânico no dia a dia das pessoas e na história da humanidade, e já foi tão questionada e debatida por grandes filósofos, sem nunca ter chegado a uma conclusão definitiva, que se tornou quase vazia a pergunta:

O que é a Arte?

Nesse texto eu não tenho a pretensão de resolver uma questão tão importante, mas apontar uma visão alternativa, a de que a arte é uma possível consequência de um processo evolutivo e, portanto, intrínseca à natureza da espécie humana.

Para a filósofa Viviane Mosé os seres humanos são seres essencialmente virtuais. A virtualidade é a capacidade de se viver uma vida fora do mudo concreto através do acesso da memória e criação de ideias dentro da mente num processo ininterrupto. Nesse mesmo instante enquanto você lê, a sua mente não está restrita às palavras lidas no momento presente. Pode haver uma comparação instantânea com outros textos e ideias com os quais já teve contato, pode haver uma expectativa ou intuição de para onde as ideias vão. Você pode lembrar de uma pessoa que teria (des)prazer na leitura desse texto. Sempre podemos considerar também as distrações, a lembrança de um boleto não pago, a expectativa de assistir um jogo na semana que vem, ou qualquer outra coisa que lhe venha à cabeça. A mente projeta o mundo. Esta é uma característica única e exclusiva da espécie homo sapiens sapiens. Há primeiro que se entender a necessidade do uso duplo do termo ‘sapiens’ na designação da espécie, cada uma representando uma revolução cognitiva.

As revoluções cognitivas

A primeira revolução cognitiva, segundo o historiador Yuval Harari, foi o desenvolvimento de uma linguagem simbólica complexa que permitiu ao homo sapiens arcaico acumular informação e formar bandos maiores. Antes, os humanos caçadores coletores formavam bandos de até trinta pessoas. Agora, através da comunicação, em especial a fofoca, era possível a formação de laços sociais com até 150 pessoas em uma estrutura social hierárquica.

Esse aumento no tamanho do coletivo fortaleceu a espécie, mas não seria capaz de produzir cidades ou impérios, já que “a maioria das pessoas não consegue nem conhecer intimamente, nem fofocar sobre mais de 150 seres humanos” (Harari). A transposição desse limite, que permitiu a criação de civilizações complexas, ocorreu pelo surgimento da ficção, a capacidade de criação de mitos e de cooperar em torno deles.

“Toda cooperação em grande escala – seja um estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica – se baseia em mitos partilhados que só existem na imaginação coletiva das pessoas.”

HARARI, 2015, pág 36.

A natureza da arte o humano virtual por Daniel Corbani Paleta Produções

Essa capacidade de ficção ou virtualidade é o que Viviane Mosé chama de segunda revolução cognitiva, e que justifica a duplicidade do termo ‘sapiens’.

A historiadora Dulce América de Souza afirma que o humano iniciou formas rudimentares de arte, seja através da representação gráfica, do assobio ou do disfarce, para compreender e dominar a realidade à sua volta, e essa afirmação encontra amparo nos dois autores citados. Para Harari, é o mito partilhado que organiza a sociedade. Mas antes de se partilhar um mito é preciso desenvolver a capacidade de criar e crer coletivamente nesse mito. Nesse sentido, a abordagem de Mosé sobre a virtualidade é muito mais completa. Ao virtualizar o mundo, quer dizer, construir e manipular um mundo dentro da própria mente (fora do universo concreto), o homo sapiens desenvolve a capacidade de realizar experimentos e testar alternativas. É a partir da virtualidade que o humano começa a subverter e controlar a natureza.

É bom lembrar que mesmo a criação de simples ferramentas é rara entre os animais. Alguns macacos são capazes de usar graveto para alcançar insetos, ou pedras para quebrar um coco, mas unir graveto e pedra para fazer uma lança demanda a capacidade de enxergar uma utilidade ainda invisível. Só o experimento da virtualidade, também chamada imaginação, é capaz de superar o instinto puro. E ao que parece, a origem das artes está intimamente relacionada com a segunda revolução cognitiva, aquela que deu à espécie a capacidade de virtualizar a vida e criar ficções.

Uma tentativa de unificação das teorias

Sobre as teorias por detrás das pesquisas que envolvem as origens das artes, Souza nos informa que basicamente temos as que seguem:

  • Teoria da necessidade inata: o homem tem o instinto da beleza, provocando sua exteriorização na estetização das coisas, de modo mais elevado, na forma de arte.
  • Teoria da arte utilitária: a arte como resultado do aperfeiçoamento, em busca de funcionalidade e da ordem. Uma espécie de fazer melhor, ajustando ou adequando o objeto a sua perfeita finalidade.
  • Teoria mágica ou religiosa: as artes teriam origem na invocação de forças sobrenaturais.
  • Teoria da função expressiva: buscando exprimir seu interior, o meio mais adequado é o da simbolização, pois os símbolos revelam as intuições da sensibilidade humana. A arte é a expressão simbólica de uma cultura.
  • Teoria mimética: o homem tem a tendência natural de imitar. A arte passa a ser uma segunda natureza, diante da qual o homem se reconhece.
  • Teoria lúdica: uma forma de o homem dispersar as energias acumuladas depois que deixou de lutar de forma nômade pela sobrevivência, para instalar-se em um sistema de previsão e lazer.

Pode-se ousar unificar as teorias da origem das artes proposta pela autora em uma teoria da virtualidade. A arte é inata não porque há um instinto de beleza, mas porque é a virtualidade, hoje inata, mas adquirida por um processo evolutivo, e esta é a principal característica que difere o humano dos outros animais; a arte é utilitária porque a virtualidade é a ferramenta que permite a ressignificação do mundo; a arte é mágica ou religiosa porque é a virtualidade que permite a criação de mitos unificadores; a arte tem função expressiva porque a virtualização estimula e domina a intuição; a arte é mimética porque a representação da natureza produz estímulo à virtualização; e por fim a arte é lúdica porque a virtualidade permite a canalização das energias de sobrevivência.

A natureza da arte o humano virtual por Daniel Corbani Paleta Produções

A Natureza da Arte Virtualidade Criação

A Arte é política

Mesmo quando olhamos para a Grécia antiga, onde a beleza tem fundamentação na proporção, funcionalidade ou forma, todas essas apreciações encontram amparo na virtualização utilitária e controladora do mundo. Agora não mais se trata de representar a natureza e compreendê-la, mas de desenvolver mecanismos de linguagem que permitam a sua manipulação. Notadamente, a arte grega tem uma relação marcante com a matemática e o que futuramente seria a base da engenharia.

Termos como ‘infinito’, ‘essência’, ‘verdade’, entre outros, comuns nas reflexões sobre arte de diversos autores, parecem evidenciar a característica inata da virtualidade, aqui considerada a ferramenta fundamental da criação artística. Mas somente em períodos recentes é que aspectos relacionados ao contexto da obra ganham relevância. O filósofo Schelling, apesar de também recorrer a termos generalizantes, como ‘o ato absoluto de vontade’, reconhece a construção histórica para desenvolvimento da intuição e da experiência estética. Sem deixar de reconhecer a importância de outros autores contemporâneos, o brasileiro Augusto Boal é enfático ao afirmar que o teatro é essencialmente político, e desta reflexão expande-se a sua visão para a arte em geral.

Para Boal, em muitas expressões artísticas as obras produzidas existem e são reais independentemente de se ter um consumidor dessa arte. Um musicista pode compor uma canção e guardá-la para si, podendo ou não reproduzi-la única e exclusivamente para seu próprio deleite. Esta música, desconhecida de todos que não o próprio autor, existe e deve ser reconhecida como obra artística. O mesmo pode-se pensar sobre uma pintura jamais vista exceto por seu criador. No teatro não se pode dizer o mesmo. A performance teatral, quando não compartilhada por espectadores, não poderia ser classificada além de um mero ensaio. O teatro só acontece com a presença da plateia.

Com esse argumento simples, o autor questiona a criação teatral que não leva em consideração a relação que o espetáculo desenvolve com a platéia. Sendo uma relação humana, desenvolvida através de uma linguagem carregada de símbolos e com valores históricos e sociais, não pode ser vista senão como um ato político, uma força social que pode levar à estagnação ou à transformação, tal como proposto no conceito aristotélico de catarse. Não é intenção deste trabalho trazer o histórico de atuação do autor, mas vale mencionar que Boal é reconhecido como um autor de teatro tão importante quanto Stanislavski e Brecht.

Se a relação com os espectadores de um espetáculo faz do teatro um agente político, esse mesmo argumento pode ser expandido para todas as formas de manifestação artística. Uma peça musical pode ser considerada uma obra real mesmo sem publicidade, mas é quando ela encontra público que o seu simbolismo ganha forma. Em última instância, a arte não é senão uma forma de relação entre o artista e o público, e como tal carrega todas as características humanas típicas, incluindo relações de poder e influência, além das emoções que desperta. Ainda que quase todos os autores estudados atribuem características metafísicas às arte, estes também reconhecem, de uma forma ou outra, o impacto da arte nas pessoas. De maneira ilustrativa, Platão chega a propor banimento da mímese poética por causar danos ao impulso racional. Ironicamente, para alguns autores esta é a virtude da arte.

A arte é consequência da virtualidade. Tanto a criação artística quanto a sua apreciação são resultados inexoráveis da característica humana inata de dar sentido ao invisível. Sob esse ângulo, desenho, música, interpretação, todas as técnicas, incluindo a tecnologia aplicada à arte, são apenas meios para um fim. A arte acontece no nível da significação, e a linguagem escolhida age apenas como um suporte a essa relação a ser estabelecida entre o artista e o público.

Um parênteses sobre a Arte Tecnológica

Pode-se dizer até que, levando em conta o contexto sociocultural contemporâneo, a tecnologia se tornou uma linguagem mais presente do que qualquer outra.

O mundo vive o que hoje se convencionou chamar de era da informação. A presença de computadores e celulares na vida das pessoas, em especial dos mais jovens vai muito além do lazer, sendo elemento essencial no trabalho, nos estudos e nas interações sociais, segundo Jaime Araujo de Oliveira. A tecnologia, em especial a digital, permeia todos os aspectos da vida contemporânea quase ao ponto de não mais ser notada. Se Boal tem razão ao afirmar que a relação com o público deve ser pensada no momento da criação, a tecnologia deve ser sempre considerada como suporte, linguagem ou tema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

MOSÉ, Viviane. O homem que sabe: do homo sapiens a crise da razão. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade . Porto Alegre: L&PM Editores S. A., 2018.

SOUZA, Dulce América de; BATISTA, Valdoni Moro. História da arte. Porto Alegre: SAGAH, 2019.

CELKYTE, Aiste. Ancient Aesthetics. 2018. Disponível em: www.iep.utm.edu. Acesso em: 21 out. 2021.

FERRAGUTO, Federico. Filosofia da arte e arte de filosofar. arte, linguagem e religião em fichte e schelling (1807-1812). Kriterion: Revista de Filosofia [online]. 2015, v. 56, n. 132 [Acessado 21 Outubro 2021] , pp. 473-494. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0100-512X2015n13209ff>. ISSN 1981-5336. https://doi.org/10.1590/0100-512X2015n13209ff.

BOAL, Augusto. O teatro como arte marcial. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

OLIVEIRA, Jaiane Araujo de. Juventude e novas tecnologias da informação e comunicação: tecendo redes de significados. Disponível em: pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_ar ttext&pid=S2175-25912014000200006. Acesso em: 21 out. 2021.